terça-feira, 8 de junho de 2010

VENHA VER

O jornalista amapense Ronan Nascimento vive em Brasília e dia desses redescobriu a cidade. A redescoberta deu origem a um artigo escrito especialmente para nosso blog.

Sobre Brasília, Clarice Lispector certa vez escreveu que era uma cidade na beira do abismo. Saindo demais de seus limites, a pessoa cairia pelas beiradas. Quando ouve isso, Janaína Miranda, fotógrafa e artista plástica, tem um sobressalto e aponta para Humberto. Ele vive dizendo isso!. Humberto Lemos, também fotógrafo, é carioca recém-chegado em Brasília há dez anos. É uma constante que pessoas vindas do Rio ou de São Paulo reclamem da falta do que fazer no Distrito Federal. A própria Clarice escreveu sobre a solidão opressiva das ruas, digo a ele.


Acho isso ofensivo, defende-se a moça, Morei aqui a vida toda e não sinto esse marasmo. Mas Humberto conta que ao chegar odiou a cidade com todas as forças. É muito nova. Tem outro ritmo. Você precisa descobri-la seguindo caminhos escondidos. Humberto foi o idealizador do Fotoclube508, onde Janaína é aluna e professora. Uma comunidade de fotógrafos que há cinco anos faz pesquisas da linguagem fotográfica e projetos de inclusão visual.


O número 508 faz referência à quadra em que o grupo começou a dar aulas, no Espaço Renato Russo. Outra peculiaridade local: As ruas não têm nomes para se localizar. Apenas letras e números. CRS 508 significa Comércio Residencial Sul 508. Cartografia militar que visa simplificar, mas confunde visitantes. O excesso de praticidade deixa pouco espaço para a poesia, reclamam recém-chegados. Como criar laços com uma rua chamada “W3”?


Mas, então, algo acontece. Uma biblioteca pública com jardim interno escondida na 308 Sul. Idéia esquecida de Lúcio Costa para as quadras fechadas. Velhinhos praticando Tai Chi Chuan nos imensos gramados da 104 Norte. As árvores retorcidas pelo solo desértico formando corredores de folhas caindo entre os blocos. Ipês explodindo amarelo ou rosa onde deveriam haver esquinas. E a luz. Uma luz que parece mais vagarosa do que em outras cidades, embora venha do mesmo sol.


Talvez essa calma, essa lentidão, seja uma impressão que a luz deixa, explica a professora. É como se Brasília fosse planejada para aproveitar o máximo de iluminação, do primeiro até o último fiozinho de sol no horizonte. “Mas ela é”, interrompe Humberto, O plano piloto foi construído para ter prédios pequenos, com pilotis por onde as pessoas podem passar. E a luz, do meio do planalto central, também passa.


É fácil não prestar atenção. Uma das maiores dificuldades de Janaína é mostrar aos alunos como perceber a luz. Cada hora do dia, ensinam os fotógrafos, revela outro mundo. Profundo e sensual pela manhã, chapado e com sombras sólidas ao meio-dia. Com uma lua gigantesca, indecente, sozinha num céu limpo às nove da noite, descreve Humberto. O que se ganha em Brasília é tempo, reflete Janaína. Tempo para ver.


Artigo: Ronan Nascimento
Fotos: Janaína Miranda (principal), Humberto Lemos (corpo do texto)

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